Há anos é comum ouvir nos movimentos populares que lutam por direitos humanos que todo preso é um preso político. Isto porque a justiça penal no Brasil é profundamente seletiva e sempre esteve preocupada com a criminalização de atividades econômicas e culturais (não esqueçamos da repressão legal à capoeira e aos terreiros de candomblé) praticadas pelas pessoas mais pobres, silenciando sobre as ilegalidades dos ricos e poderosos.
O objetivo deste texto é pensar sobre um impasse criado pela judicialização da política via direito penal (como a força tarefa Lava-Jato) que, na minha opinião, dificulta a construção de alternativas de ação e de saídas políticas. Proponho mudar os termos do combate à corrupção e aponto algumas mudanças institucionais que poderiam aumentar o controle democrático do sistema eleitoral, promovendo uma separação entre economia e política e entre política e direito. É hora de retomar a discussão do controle democrático das ações de governo.
Hora também de pensar nas afinidades entre a criminalização seletiva dos mais pobres e a atual incriminação dos dirigentes políticos, em especial em certas ações da Lava-Jato. Ambos resultam do funcionamento de um Estado penal cuja lógica é administrar conflitos da circulação da riqueza, encarcerando uns e liberando outros.
Na Lava-Jato, toda a discussão sobre a investigação e a punição dos corruptos está restrita ao âmbito do direito criminal: uma forma de lidar com o conflito em que o Estado se dirige contra um indivíduo, criando uma desigualdade que não pode ser senão mitigada pelas regras que asseguram o direito de defesa e a presunção de inocência, o que não tem sido respeitado no julgamento e nem na opinião pública.
O Direito penal é essencialmente conservador, procura apenas individualizar condutas, ou apontar a participação específica desta ou daquela pessoa numa ação delitiva. Não cabe ao direito penal negociar alternativas de regulação do Estado, propor novas regras ou soluções, como seria possível em uma ação civil pública, por exemplo.
A Lava-Jato apura atos de indivíduos ligados ao financiamento dos partidos políticos e das campanhas eleitorais. Mas não é a forma nem o lugar para discutir o financiamento de campanhas e o sistema eleitoral nem as práticas empresariais ou o funcionamento concreto do capitalismo no Brasil. O direito penal apenas tira jogadores individuais do jogo, mas não tem poder de mudar as regras do jogo – o que só pode ser feito pela política.
A deliberação sobre limites do poder econômico de grandes empresas sobre o sistema político é que deveria ser o cerne do debate público nos dias atuais. Mas estamos um pouco desorientados em meio ao bombardeio de informações sobre quem seriam os indivíduos culpados por um arranjo social, econômico, político e legal que nem de longe será desmantelado pela prisão desta ou daquela pessoa.
O Estado penal é uma construção que se torna mais potente mundialmente a partir do declínio dobem-estar social como horizonte político. Ele responde a um vazio deixado pela desinstitucionalização dos conflitos na era neoliberal, já que o trabalho formal e assalariado entrou em declínio, as fronteiras nacionais são cada vez mais cruzadas por populações de trabalhadores migrantes. Nos territórios, o que sobra é a eficiência do direito penal para controlar a circulação de uma riqueza cada vez mais transnacional e que se dá no limite entre o legal e o ilegal.
Desta forma, o Estado penal no Brasil ganhou desenhos precisos: o seu foco está no crime patrimonial e no controle sobre venda de drogas. O perfil populacional sobre o qual o Estado penal se concentra é bem recortado: jovem, negro, periférico, dos estratos mais baixos da economia criminal. Além disso, o controle do crime no Brasil é seletivo e violento, com um componente de discriminação racial e etária relevante.
No Brasil, o Estado penal convive com abusos desde sempre. Esses abusos não foram tocados pela Constituição de 88 e nem posteriormente, a não ser pontualmente, já que a democracia política hoje ameaçada de golpe nunca foi sólida o suficiente para realizar reformas no Judiciário e nas polícias.
Os mecanismos que operam a investigação de crimes comuns e a repressão seletiva de grupos sociais são coincidentemente os mesmos agora utilizados contra alguns políticos e empresários: identificação prévia de suspeitos (parte-se das pessoas que se quer pegar e não de condutas que se quer reprimir); escutas telefônicas dos suspeitos– na maioria ilegais para tentar descobrir condutas duvidosas que podem dar ensejo a prisões em flagrante; prisões em flagrante ou cautelares para negociar a confissão e encurtar o trabalho de investigação e produção de provas. A maior parte das prisões por tráfico de drogas resulta deste mecanismo, em que as testemunhas judiciais são os próprios policiais que põem em movimento este estilo de incriminação.
O autoritarismo brasileiro há muito tem um vínculo forte com uma ideologia punitivista que recusa a dimensão de direitos individuais de acusados ou de suspeitos. A acusação dirigida aos “bandidos” não é modulada e toda sorte de abuso e ilegalidade tem sido tolerada pela maioria em nome da dureza contra os“bandidos”. Mesmo que o uso político das categorias penais tenha sido denunciado pelos movimentos populares desde a abolição da escravidão, com o controle social sendo realizado sobre capoeiras, casas de candomblé, formas de sociabilidade urbana negra, mendicância, infância pobre, uso de maconha.
E a operação simbólica complicada no contexto atual foi a oposição ter conseguido colar aos ilegalismos eleitorais uma sujeição criminal sob o signo do bandido: a designação de “petralhas” associa aos petistas a pecha de banditismo. E todo mundo sabe o tratamento que uma parcela expressiva da população brasileira (que sustenta ideais e práticas autoritários) deseja dar aos “bandidos”.
Claro que também há recusa a esta simplificação e aos termos autoritários do debate, principalmente quando as Frentes Brasil Popular e Povo Sem Medo ocupam as ruas para acusar o golpe e tentar recuperar a discussão nacional para o campo da política. Ou quando o Manifesto das Periferias Contra o Golpe lembra que o sentido histórico da luta é assegurar aos de baixo a mesma proteção e garantias que sempre tiveram os de cima. E não o contrário.
O crescimento do encarceramento, a arbitrariedade policial, a seletividade de acusações e a inversão do ônus da prova são realidades das classes populares há muito tempo. Mas não é um ganho que isto agora atinja pessoas de maior prestígio. Estamos falando da necessidade de reinventar novas bases da democracia, da necessidade de criar novos modos de ação político-partidária, mas também de unificar as lutas por democracia e direitos humanos, para que a arbitrariedade policial e judicial seja tão intolerada se atingir o Lula ou atingir a juventude negra e pobre.
Insisto ainda num desafio do qual pouco se tem falado: a necessidade de defender o sistema político da interferência tão direta e devastadora dos interesses econômicos de meia dúzia de empresas. A Lava-Jato não tem solução para isto. Punir 10, 20 ou 50 não vai fazer por si só que as regras do jogo sejam aperfeiçoadas. Prender muito não acabou com o tráfico de drogas e não há nenhum motivo para acreditar que acabará com a interferência das grandes empresas nas decisões políticas.
Por isso, acredito que para recuperar os termos do debate a um campo democrático, 4 pautas sejam agora fundamentais:
1) Reforma política – é preciso lutar por mudanças nas regras eleitorais e na regulamentação partidária capazes de constituir barreiras para a influência do poder econômico sobre o sistema político;
2) Controle social das empresas – é preciso propor legislações que estabeleçam mecanismos de governança corporativa, conselhos independentes, mecanismos de fiscalização mais acurados, nas empresas públicas e nas empresas privadas que prestam serviços às empresas públicas, nas empresas de mídia que usam concessões públicas. Discutir a limitação do tamanho das empresas, como Bernie Sanders vem propondo;
3) Políticas de expansão do estado de Direito – é preciso fortalecer uma cultura de respeito aos direitos individuais, discutir a descriminalização e a descarceirização de condutas, rever regras de investigação criminal, dar transparência aos atos policiais (não necessariamente nos casos concretos, mas no conjunto das ações das organizações), propor controle externo efetivo da atividade policial, participação social na definição de objetivos e metas das polícias, do Ministério Público e do Judiciário. Claro que é necessário haver autonomia para decisões técnicas, mas decisões administrativas e de política criminal tem que ser objeto de discussões mais amplas, via participação social nas políticas de segurança e justiça. Temos que discutir a reforma das polícias;
4) Controle social das decisões governamentais – é necessário pautar o aumento de participação social em todas as instâncias de governo, sobretudo as que envolvem uso e repasse de recursos, precisamos de maior controle social na gestão de obras públicas e grandes gastos governamentais.
São ideias que merecem discussão e certamente não esgotam a pauta democratizante do nosso tempo. Contudo, precisamos pautar o que será o campo democrático a partir de segunda-feira, porque até domingo a nossa tarefa é dizer não ao golpe!