FRENTE BRASIL POPULAR > Imprensa > Artigos > Sobre um golpe patriarcal televisionado

Esse impeachment é golpe. E é patriarcal, não só porque é a operação de um bando de homem contra uma mulher. O patriarcado é sempre mais complexo, nojento e anda junto de outras estruturas opressivas.

Ontem, quando os deputados começavam votando “pela (minha) família”, a gente já sabia que o voto deles seria “sim” ao que eles caracterizavam como impeachment mas ainda era apenas um passo do processo.

A família que eles evocam é a mesma que eles escreveram no estatuto da família e que não tem a ver com a maioria das famílias reais. Eles falam de famílias de homem, mulher, filhos. Famílias heteronormativas, que transmitem heranças entre gerações e que tem empregadas domésticas que não recebem os direitos que eles mesmo resistiram tanto em aprovar. Famílias que podem ser compostas por pessoas que encontram a felicidade em sua vida como indivíduos, e que não necessariamente estão felizes por voltar todos os dias pra mesma casa, cozinha, cama.

Em nome dessa família, e das mulheres que todos os dias, com seu trabalho, energia e afeto, garantem um espaço limpo em que a convivência seja possível, em que as pessoas se sintam humanas nesse mundo que as trata como coisas, esses caras que votaram “sim” ontem também votaram outras vezes pela terceirização do trabalho, contra o aborto e nossa autonomia. E esses caras só estão no mundo público, da política, porque a lógica patriarcal e capitalista, imprime uma dinâmica dicotômica que separa público e privado, que faz com que as mulheres que estejam no espaço público tenham que dar seus pulos pra garantir o que esse modelo de família diz ser sua tarefa primeira (o trabalho doméstico e de cuidados, que acabam sendo repassados pra outra mulher). Os deputados? Eles tem coisa “mais importante” pra fazer, e tem o doméstico resolvido por outra pessoa pra poder operar seus interesses (de seus financiadores) nesse congresso nacional viciado. Eles, aliás, só estão lá porque algum puxador de voto garantiu suas vagas e de mais outros tantos, que agora queimam os 54 milhões de votos que a Dilma recebeu para governar o país.

Constatamos, sem perplexidade nem zoeira, que esses que começam o voto “pela família” são aqueles que, junto com seus assessores e financiadores, frequentam o circuito da prostituição em Brasília. Porque esta também é uma prática patriarcal que mantém esse modelo opressor.

E eles ainda tem a cara de pau de votar sim dizendo que são contra a “vagabundização” da mulher. Aliás, esses mesmos que ofendem as deputadas que tem outra posição política, as chamando do que? Vagabundas. Aproveito para dizer que Margarida, Luiziane e Jandira nos representaram muito.

A maioria dos motivos expressados pelo “sim”, além da família (deles), não constavam no relatório. Crime de responsabilidade? Pedaladas? Não não. Eles falavam em deus, aniversários, as mulheres deputadas também lembravam de seus pais, de seguidores da igreja x ou y, de Israel (!!!) e de outras tantas motivações que não tinham nada a ver com o que consta no relatório.

Colocando em termos um pouco mais elaborados e desnaturalizados, a esmagadora maioria das falas dos votos “sim” se encaixaria em: “por tudo aquilo que permite que meus interesses particulares e de meus financiadores prevaleçam, pelos meus privilégios de gênero, raça e classe; por mais lucros e menos direitos, por mais hipocrisia e menos distribuição de renda”.

Seus nojentos.

Dilma não se encaixa nesse modelo de família, não tem um marido, não se encaixa em nenhum padrão de mulher bibelô. É todos os dias e o tempo todo julgada, desqualificada, agredida verbalmente simplesmente porque é mulher. Os despolitizados que estão na política do Congresso levantam a placa tosca do “Tchau, querida”. É muita misoginia em um golpe só.

Mas além de ser mulher, Dilma está sendo atacada o tempo todo porque está a frente e é parte de um projeto político que, mesmo cheio de limites e contradições, ameaça (mesmo que as vezes só simbolicamente) esses privilégios todos que os golpistas da câmara, do judiciário e dos grandes meios de comunicação defendem. Não é a toa que eles também votavam sim dizendo “fora PT”, “fora Lula” e homenageando torturadores, a polícia militar que mais mata no mundo (e destrói famílias que não importam para o poder), ….

Está tendo golpe.

A democracia que defendemos hoje é a que temos, não é ainda a que queremos e lutamos todos os dias pra conquistar: que respeite nossa autonomia, nossos direitos no trabalho e na vida, nossa vida sem violência, nosso tempo para criar, nossa privacidade e liberdade nas ruas e nas redes, nossa saúde e nosso corpo. Que a justiça não seja seletiva e que a memória de tantos que morreram em luta e por lutar, como os sem terra assassinados há 20 anos em Eldorado dos Carajás seja combustível pra mais luta por transformações. Que a igualdade seja de verdade, e para todas, e não seja só uma palavra em uma constituição que o poder legislativo passa por cima.

Foto: Alessandra Ceregatti.


Ontem, do lado de cá, com quem sempre teve lado, ali no Vale do Anhangabaú, entre tristeza, raiva, perplexidade, nojo e muita razão, evocamos juntas a luta de mulheres de outras partes do mundo que enfrentam todos os dias a tirania de Estados antidemocráticos, que violam seus direitos, corpos, autonomia e autodeterminação.

“Wamama musi lale lale lale. Wamama musi lale. Bado mapanbano mapanbano mapanbano” ~em Swahili~
“Mulheres despertas, a luta está só começando!”

E seguimos juntas em marcha, até que todas sejamos livres.