É possível ser injusto mesmo com a lei nas mãos
Especialistas apontam que Judiciário encurta caminhos no processo de impeachment

Pode parecer antagônico, mas é possível ser injusto ainda que sob as normas da Justiça. Basta utilizar as brechas legais para manobrar, investigar e julgar com parcialidade, como apontam especialistas em Direito ouvidos pelo Portal da CUT.
Para eles, medidas antes consideradas exceções passaram a ganhar corpo e foram aceitas por quem parece acreditar nos fins como justificativa para os meios desde que esteja em ação o que acreditam ser um processo de ‘caçada a corruptos’.
Situações como a condução coercitiva do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ainda que não tivesse se negado a prestar depoimentos, e vazamentos seletivos de conversas entre o ex e a atual presidenta, Dilma Rousseff, apontam muito mais para uma tentativa de minar reputações do que de expor provas para um suposto ‘interesse público’.
Presidente da Associação dos Juízes para a Democracia, André Bezerra, ressalta que a alegação de ‘caçada a corruptos’ não pode justificar a afronta a direitos fundamentais, sob pena de o país regredir a tempos de ditadura.
“Qualquer medida de restrição de direito é excepcional na democracia. A prisão não pode prevalecer sobre a liberdade. A violação de sigilo não pode prevalecer sobre a intimidade, apenas em casos excepcionais. O problema é que muitas vezes são feitos verdadeiros malabarismos hermenêuticos* para se justificar determinadas condutas.”
Bezerra ressalta que a defesa de uma ‘limpeza moral’ no Brasil, dentro de uma aparente legalidade, já levou a um período de repressão, torturas e assassinatos em nome da lei.
“Em nome do combate à corrupção foi dado um golpe no Brasil em 1964 que nos levou a uma terrível ditadura por mais de 20 anos, tudo dentro de uma aparente legalidade”, acrescentou.
Buracos
Doutora em processo penal pela Universidade de São Paulo (USP) Fernanda Vilares aponta o que considera condutas reprováveis nas investigações da lava-jato.
Ela destaca que no sistema acusatório brasileiro, a Constituição não dá ao juiz o poder de investigar, determina que seja imparcial e tenha de respeitar o princípio da inércia constitucional, ou seja, aguardar ser provocado para agir diante de uma acusação.
Mas o juiz Sérgio Moro, ressalta Fernanda, tem abraçado atribuições que não são suas. “Ele acaba tomando um pouco o papel do MP (Ministério Público), tendo atitudes instrutórias que não são vedadas totalmente ao juiz pelo nosso sistema constitucional, mas devem ser excepcionais. Só que, pelo que tenho de conhecimento do processo, ele toma iniciativas assim de forma constante”, avalia.
Como muitos outros especialistas em Direito, ela também critica a divulgação da conversa telefônica entre Lula e Dilma Rousseff, especialmente, porque não parece ter tido qualquer sentido além de constranger os envolvidos.
Fernanda desaprova ainda outros pontos inerentes ao processo como a busca e apreensão num escritório de advocacia, coberto pelo sigilo profissional garantido pela Constituição, e a forma como a captação de provas tem acontecido.
“Em geral, operações policiais tem uma fase sigilosa e outra ostensiva. A fase sigilosa, em que ocorrem as interceptações telefônicas e os direitos de investigados são muito restritos, tem de ser a mais curta possível para, logo depois, vir a fase ostensiva em que as informações são levadas à tona e as pessoas possam se defender”, explica.
De acordo com a doutora, a grande quantidade de fases interligadas faz com que muitos fatos sejam mantidos em sigilo e investigados ad eternum. “Vão fazendo um vasculhamento das questões envolvidas até se achar alguma prova contundente e isso também pode ser contestado. Qual seria o limite da invasão de privacidade para que tenha uma investigação sigilosa durante tanto tempo? Porque a lava-jato originou-se de contas CC5 (usadas por não-residentes no Brasil para que possam depositar o dinheiro na moeda do país de origem), em Foz do Iguaçu, em 2003. Faz mais ou menos 10 ou 12 anos que são investigados de maneira sigilosa”, critica.
Aplicação seletiva
Advogado e professor de Direito Econômico e Economia Política da USP e do Mackenzie Gilberto Bercovici também repudia os procedimentos relacionados aos grampos, avalia que há uma aplicação seletiva da lei e que a delação premida é utilizada como uma espécie de chantagem.
“Prisão para fazer delação premiada é uma aberração jurídica que não existe em nenhum lugar do mundo, nem na Síria. A própria questão dos grampos, se fosse em condições normais, seriam anulados pelos STJ (Superior Tribunal de Justiça) e pelo STF (Supremo Tribunal Federal), que parecem estar com medo não sei do quê. Da opinião pública não é, porque nunca ligaram, são órgãos contramajoritários, não são eleitos”, fala.
André Bezerra, da AJD, discorda e acredita que as manifestações populares são capazes de influenciar os magistrados e ministros. E exemplifica ao lançar mão da situação dos milhares de moradores das periferias do país sem condições de contratar uma defesa capaz de fazer valer o Estado de direito.
“Quem lida no cotidiano da evolução da jurisprudência, verifica que nos últimos tempos tem se estabelecido uma jurisprudência muito mais vigorosa, principalmente no campo penal, possivelmente sob influência da opinião pública que deseja medidas mais duras. O problema é que o endurecimento,muitas vezes, leva até ao aumento da criminalidade. O Brasil, apesar de ter a quarta população carcerária do mundo, não vê a escalada da violência urbana arrefecer. É preciso se pensar em problemas estruturais e a própria corrupção tem de ser resolvida de forma estrutural”, define.
Gilberto Bercovici acredita existir um desejo de encurtar caminho para a punição, mas, conforme observa, quem perde em situações assim é sempre a democracia.
“A democracia não é feita de atalhos, de desvios. As pessoas devem entender que governo eleito tem mandato e, em princípio deve cumpri-lo até o fim. Se o governo é ruim, você não gosta, na outra eleição vota e faz campanha para que ganhe quem você achar melhor”
Momento de discutir o Judiciário
Bercovici ressalta ainda que os mesmos critérios utilizados para caçar lideranças do Poder Executivo no país poderá ser utilizado contra os cidadãos e resultarão em danos terríveis à democracia.
“Virou uma perseguição política e aí não tem mais saída para ninguém. Depois de violar as regras para punir personalidades políticas, imagina o que será feito conosco, cidadãos comuns. Disso para gerar arbitrariedade e não seguir um processo legal para qualquer um é um pulo, e aí vira terra de ninguém, é a lei do mais forte.”
O presidente da AJD espera ainda que ter o Judiciário na berlinda ajude a discutir a democratização desse poder. “Defendemos a criação de ouvidorias externas, hoje existem ouvidorias meramente internas, isto é, formada apenas por membros do Poder Judiciário. A gente defende que membros da sociedade civil tenham controle mais efetivo para dar mais transparência, o que fortalecerá o Judiciário, porque, ao nosso ver, quanto mais submetido à crítica e à opinião das pessoas, mais forte fica, mais dotado de legitimidade.”
*Hermenêuticos: interpretação dos textos, do sentido das palavras